Sessenta e um ano depois de o Brasil viver sob a ditadura civil-militar, o parlamento se revela mais próximo de modelos cerceadores da liberdade
(Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)
O projeto de lei de anistia aos golpistas não apenas é instrumento de obstrução na tramitação de matérias na Câmara dos Deputados por ação de parlamentares do Partido Liberal. Trata-se de uma conduta longe de ser compreendida como direito e sim de afronta aos princípios constitucionais aos direitos fundamentais dos brasileiros e dos eleitores. É atitude impositiva.
“As questões políticas são demasiadas sérias para serem deixadas aos cuidados dos políticos”, afirma Hanna Arendt em uma das passagens do “O Que é Política”. A obstrução patrocinada pelo PL traz à mente o pensamento de Arendt e escancara a truculência do processo político-parlamentar ora vivido no Brasil.
Sessenta e um ano depois de o país viver sob a ditadura civil-militar, o parlamento brasileiro se revela mais próximo de modelos cerceadores da liberdade. Parcela dos eleitos expõe o gosto pela arbitrariedade. Nesse momento, Câmara dos Deputados e Senado deveriam liderar, em nome da própria existência legítima do Poder Legislativo, movimentos em defesa da democracia e não aceitar atitudes de enfraquecimento e de construção de outros retrocessos.
O que está sendo obstruído diz respeito ao dever do Legislativo de se posicionar sobre matérias que afetam diretamente a população, às instituições, a milhares de trabalhadores. A mídia pode ser um dos espaços de apresentação dos projetos parados pela obstrução e dos efeitos dessa paralisia na vida nacional. A mídia pode e deve informar, é para essa função que ela justifica o tempo todo a sua existência.
Outros setores ativos e sensatos da sociedade também têm condições de promover esclarecimentos nos diferentes espaços sobre as motivações da obstrução produzida pelo PL e outros apoiadores. Demonstrar pedagogicamente as consequências dessa atitude e motivar eleitores ao aprendizado sobre as respostas a serem dadas a esses parlamentares.
A Câmara dos Deputados possui 513 membros e, nesse ambiente, interesses antagônicos se dão como parte da natureza do parlamento. Os recursos de acordo e de obstrução são historicamente utilizados na medição de força para fazer valer a cota dos interesses de alguns. Em alguns casos, como o atual – votar um projeto de lei para anistiar golpistas – é ultrapassar o limite do legitimo e do legal.
A presidência da Câmara está sendo confrontada pela bancada do PL e, nesse duelo, terá de apresentar uma posição cujo rumo aguardamos. O tamanho do movimento externo diante da proposta votar a anistia aos golpistas pode ter reflexo no emparedamento interno da casa que se reflete do lado de fora, em nós. E, de novo recordo Arendt: “A política baseia-se no fato da ‘pluralidade dos homens’, ela deve, portanto, organizar e regular o convívio de diferentes, não de iguais”.