As culturas afro e indígenas, em fragmentos, endoidecem multidões, derramam lágrimas, chamam os corpos à dança e promovem curiosidades
Grande Rio levou para a avenida o enredo “Pororocas Parawaras: As Águas dos Meus Encantos nas Contas dos Curimbós”
O Carnaval se fez ponte, canoa, barco, estrada na tarefa da reconciliação com nossas origens. Restaurar é uma viagem longa e adversa. Tem muros altos erguidos em séculos da história de colonização e da colonialidade vigente, impregnada em instituições, no modo de operar a academia e das religiões dominantes.
Nos livros faltam páginas ou estas foram rasgadas antes para assegurar à escola o ensinar pensamento colonizador-colonial e a pesquisa, com selo de qualidade, reproduz os esteios desse conhecimento sem contracolonizar. Nos ensinaram a nos perder de nós mesmos e a enquadrar no molde do pensamento hegemônico as gentes diferentes cortando delas aquilo que não cabe no encaixotamento.
Então, vem o carnaval, como o de 2025 (não é o primeiro a fazer aula pública de Brasil) e nos põe diante da profusão de outros conhecimentos em forma de samba-enredo. As culturas afro e indígenas, em fragmentos, endoidecem multidões, derramam lágrimas, chamam os corpos à dança e promovem curiosidades: o que essa palavra significa?
Neste ano, os sambas-enredos são o livro da outra história cultural-política-social, econômica e da espiritualidade da nação Brasil. As páginas, separadas por cada escola, nos fazem querer ler mais e reivindicar que escolas e universidades incluam pelas portas principais dos currículos e panos de ensino o conhecimento desse livro cantado e dançado. Eis pedacinho dele:
“A Mina é Cocoriô
Feitiçaria Parawara
A mesma Lua da Turquia
Na travessia foi encantada
Maresia me guia sem medo
Pro banho de cheiro
Na encruzilhada, espuma do mar
Fez a flor do mururé desabrochar” (Grande Rio)
“Chama João pra matar a saudade
Vem comandar sua comunidade
Ó Jakutá
O Cristo preto me fez quem eu sou
Receba toda gratidão, Obá
Dessa nação nagô
Da casa de Ogum, Xangô me guia
Da casa de Ogum, Xangô me guia
Dobram atabaques no quilombo Beija-Flor
Terreiro de Laíla, meu griô” (Beija-Flor)
“Salve, seu Zé, que alumia nosso morro
Estende o chapéu a quem pede socorro
Vermelho e branco no linho trajado
Sou eu malandragem de corpo fechado
Macumbeiro, mandingueiro, batizado no gongá
Quem tem medo de quiumba não nasceu pra demandar
Meu terreiro é a casa da mandinga
Quem se mete com o Salgueiro, acerta as contas na curimba” (Salgueiro)
“Oya, Oya, Oya ê
Oya Matamba de kakoroká zingue
Oya, Oya, Oya ê ô
Oya Matamba de Kakoroká zingue ô
É de arerê, força de Matamba
É dela o trono onde reina o samba
É de arerê, força de Matamba
É dela o trono onde reina o samba
Sou a voz do gueto, dona das multidões
Matriarca das paixões, Mangueira
O povo banto que floresce nas vielas
Orgulho de ser favela” (Mangueira)
“Vai começar o itã de Oxalá
Segue o cortejo funfun ao Senhor de Ifón, Babá
Vai começar o itã de Oxalá
Segue o cortejo funfun ao Senhor de Ifón, Babá
Orinxalá destina seu caminhar
Ao reino do quarto Alafin de Oyó
Alá, majestoso em branco marfim
Ofereça pra Exu, um ebó vai proteger
Penitência de Exu, não se deixa arrefecer
Ele rompe o silêncio com a sua gargalhada
É cancela fechada, é o fardo de dever
Oní sáà wúre, awúre, awúre
Quem governa esse terreiro ostenta seu adê
Ijexá ao pai de todos os oris
Rufam atabaques da Imperatriz
Vai começar” (Imperatriz)