O cientista social Sílvio Cavuscens, presidente do Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), afirmou que a tentativa de implementar um marco temporal para demarcar terras indígenas é hoje “a maior ameaça ao futuro dos povos” originários do Brasil. A falta de diálogo na comissão do Supremo Tribunal Federal (STF) provocou inclusive a saída de instituições indígenas da discussão.
“Não era um espaço democrático, mas um espaço de manipulação, numa perspectiva de reduzir os direitos indígenas. Então, eles se retiraram para lutar de outras formas. O marco temporal representa, talvez hoje, a maior ameaça ao futuro dos povos indígenas. A gente não podia esquecer que boa parte desses povos, hoje, se encontram sem as suas terras demarcadas”, disse Cavuscens na entrevista a seguir.
O senhor representa uma associação que faz essa articulação com a população Yanomami. Pode explicar exatamente como ela funciona?
Sou presidente da associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya). É uma associação que atua desde 1991 junto ao povo Yanomami do Amazonas, iniciando a tentativa de salvar uma parte da população do rio Marauiá, que estava acometida por tuberculose. Então, a partir dessa inciativa emergencial, a gente foi atendendo outras necessidades e, pouco a pouco, foi estabelecendo três programas de trabalho junto ao povo Yanomami do Estado do Amazonas, principalmente na área da educação escolar diferenciada, valorizando a língua, a cultura e o jeito de ser do povo Yanomami. Um programa de saúde, prevenção e educação em saúde, que visa a questão da valorização da saúde tradicional, inclusive o trabalho das mulheres, dos xamãs, que eles chamam de re-cura. E também o controle social, garantindo que eles possam participar das instâncias de decisão sobre assistência de saúde na sua terra. E um terceiro programa, que é um programa de apoio à governança Yanomami, assessorando as associações, estimulando e apoiando processos organizativos. Então, hoje já tem cinco associações Yanomami no Amazonas.
Quantas associações existem no estado hoje?
Hoje já tem cinco associações Yanomami no Amazonas. Ele [Davi Kopenawa] citou a Ayrca [Associação Yanomami do Rio Cauabaris e Afluentes], em São Gabriel da Cachoeira. Tem a associação Kurikama no município de Santa Isabel do Rio Negro. E agora, recém-formada, uma associação chamada Parawami e uma outra chamada Xoromawe, no município de Barcelos. No rio Padauari é a Xoromawe e nos rios Demeni e Aracá, a associação Parawami.
Os povos indígenas são afetados por várias questões, como o marco temporal, que é uma pauta permanente deles. A comissão sobre o tema no STF até agora não chegou a uma decisão. Como o senhor avalia essas negociações?
Primeiro, é uma dinâmica extremamente complicada, porque não houve real respeito ao processo de consulta. As associações representativas, como a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) se retiraram porque não era um espaço de diálogo franco, transparente, com atores que queriam resolver o problema, debater abertamente o problema. Não era um espaço democrático, mas um espaço de manipulação, numa perspectiva de reduzir os direitos indígenas. Então, eles se retiraram para lutar de outras formas. O marco temporal representa, talvez hoje, a maior ameaça ao futuro dos povos indígenas.
A gente não pode esquecer que boa parte desses povos, hoje, se encontram sem as suas terras demarcadas. E os povos indígenas que têm as suas terras demarcadas, homologadas e reconhecidas, sofrem ameaça constante pelas frentes de penetração econômica, por outros interesses, o agronegócio. Hoje, inclusive, os créditos de carbono, as novas estratégias que estão sendo utilizadas na tentativa de ganhar com esses territórios e promover outras dinâmicas, que não são as dinâmicas culturais.
Eles não ganhariam com os créditos de carbono?
É um tema muito espinhoso. Por quê? Porque o crédito de carbono, o princípio em si é muito interessante, mas pode representar uma armadilha muito grande através da perda progressiva do domínio, da autonomia sobre a forma de gestão que eles querem manter e que tem de forma tradicional há milhares de anos. O outro problema é que os recursos oriundos dos benefícios do crédito de carbono são orientados pelo capitalismo, pelo neoliberalismo e pelas bolsas de valores. Com isso, é um sistema muito frágil. E quando a gente fala de sustentabilidade das terras indígenas, quando a gente fala da preservação da Amazônia para uma construção de um outro futuro, não é dessa forma que se vai conseguir assegurar isso por muito tempo.
Como o senhor avalia as ações do governo federal para combater problemas como o garimpo ilegal que atinge a terra Yanomami há alguns anos? Teve um bom resultado nos últimos meses?
Sim. Desde janeiro de 2024, que o governo investiu recursos pesados, mais de R$ 1 bilhão, para ter um plano de trabalho em dois momentos. O primeiro momento é através da tentativa de retirar e de bloquear todo o esquema do garimpo na terra Yanomami. Isso envolve desde o controle da aviação ilegal, acabar com as frentes de destruição da floresta, onde os garimpeiros atuam, e também tentar fazer com que haja um controle das pessoas e comerciantes industriais e políticos que estão atrás dessa rede, dando suporte a ela. Teve quase 300 pessoas e empresas que estão sendo pouco a pouco analisadas, estão sendo verificadas, no sentido de verificar qual é o seu envolvimento direto com o processo do garimpo.
Há uma rede muito grande, que envolve hoje o narcotráfico, que está apoiando o garimpo. Segundo a Casa de Governo, que foi implantada em Boa Vista, recentemente fizeram uma avaliação em que praticamente 80% dos garimpeiros já teriam saído da área. Só que os garimpeiros utilizam novas táticas, eles vão agora se dispersando, inclusive invadindo outras áreas indígenas, como a área da Raposa Serra do Sol, como a área Yanomami da Venezuela, e mais recentemente como áreas Yanomami do estado do Amazonas.
O governo agora está numa segunda fase com a implantação, através dos TED [Termo de Execução Descentralizada] firmados com várias instituições públicas e privadas, inclusive universidade, liberando recursos para vários programas assistenciais no território Yanomami. O problema é que são ações em relação às quais houve pouca conversa com o povo Yanomami. De novo, falta transparência, falta consulta prévia e informada, com respeito. São projetos, muitas vezes, construídos no pensar de fora para dentro, de cima para baixo, e que não contemplam as reais necessidades do povo Yanomami. Por exemplo: um gasto enorme com um rancho. Milhares e milhares de ranchos distribuídos em regiões às quais o povo Yanomami não precisava. Então, não há critérios e há dificuldade de articulação entre os envolvidos. A iniciativa é boa, é muito importante, mas tem que haver uma monitoria melhor e, principalmente, uma participação Yanomami na definição das estratégias.
Como é que o senhor avalia o apoio, tanto de parte do governo quanto de políticos locais, à exploração de minério em território indígena e de petróleo na Foz do Amazonas?
Os grandes projetos são muito impactantes para o meio ambiente, para os povos indígenas e para as populações tradicionais. De modo geral, a realidade nos tem demonstrado isso nos últimos 40 anos. Esse processo intensivo de grandes projetos na Amazônia os resultados são muito aquém do esperado, beneficia poucas em presas, traz enorme prejuízo para as populações locais e não há um debate sobre isso. Quando você pensa, por exemplo, em Belo Monte, um grande projeto faraônico, muito bonito, mas há um custo socioambiental elevadíssimo e cujas propostas alternativas poderiam, através de hidrelétricas menores, mais bem pensadas, mais bem planejadas sobre o longo prazo, ter tido um impacto muito menor.
É um pouco da mesma coisa em relação àquilo que se pretende na Foz do Amazonas ou com o projeto de potássio na área dos indígenas Mura. O problema é idêntico, tentando pouco a pouco descaracterizar o território indígena, a vontade indígena, manipulando, cooptando lideranças e fazendo com que os fundamentos dos problemas que são decorrentes da extração do potássio nas terras indígenas e seu entorno não sejam discutidos. Por exemplo, o que fazer com os dejetos extraídos, que são muito importantes, mais de 70% do material extraído do subsolo representa um dejeto e ninguém fala o que eles vão fazer com esses dejetos. Outra fonte de poluição.
Teremos a COP em Belém nos próximos meses e as lideranças indígenas têm pedido maior espaço de decisão. Como você acha que isso pode ser possível?
A COP é uma conferência dos países membros da ONU, das Nações Unidas. Quem vai participar são os representantes dos países membros, cada qual com seus interesses e cada qual com seu discurso. É ambientalista, de proteção do meio ambiente, de alternativas sustentáveis mais ou menos aplicadas, na maioria dos casos. A possibilidade para os movimentos sociais, para o movimento indígena organizado, é se fazer presente através da conferência alternativa que vai ter e dando visibilidade a outras propostas, a outra maneira, outra visão de conceber o futuro da Amazônia, o problema das mudanças climáticas e possíveis soluções.
O senhor acha que essa COP pode fazer bons resultados?
A gente viu o que aconteceu com as conferências últimas e as promessas estabelecidas entre os vários países, que já demonstram claramente que eles não conseguem responder à altura das promessas ou das contingências previstas em termos de redução da temperatura do planeta ou outros danos. A gente vê o problema aqui no Brasil com a devastação das florestas, apesar de Lula ter assumido o governo e ter essa preocupação com a ministra Marina Silva, mas ainda não conseguiu por conta de toda uma dinâmica política e econômica que está colocada e que tem muita resistência em mudar as suas práticas. E há outra grande dificuldade por conta da ausência gritante do governo na Amazônia, nas bases, no município onde ocorrem os problemas.
Como você avalia a postura dos políticos locais que atacam as organizações não governamentais que têm essa articulação junto aos povos indígenas? Por que eles fazem isso?
É porque as organizações não governamentais, pertencentes ao terceiro setor, têm um olhar, uma vivência e preocupações efetivas em relação a problemas sociais, problemas ambientais e outra natureza e que tentam, ao lado dos movimentos sociais, apontar os erros do governo, propor soluções, dinamizar relações e articulações das mais diversas. Isso o governo não gosta, porque pode apontar para problemas, deficiências, falcatruas, corrupção, como muitas vezes a gente vê no caso de políticos, inclusive do Estado do Amazonas. Nos últimos mandatos dos senadores e deputados federais, são raríssimas as exceções de parlamentares que assumem posturas proativas, coerentes e em defesa da população e do meio ambiente. Normalmente têm sido massa de manobra na mão de outros interesses.
O senador Plínio Valério já acusou ONGs locais de receberem dinheiro de organismos internacionais para impedir o progresso da população local. Como o senhor avalia esse tipo de denúncia?
As ONGs que recebem mais dinheiro e que prestam menos contas são as ONGs laranjas, muitas vezes oriundo dos bastidores do governo ou de grandes empresas. É muito distinto hoje dos recursos recebidos por organizações do terceiro setor, que lutam no dia a dia para receber poucos recursos e que prestam conta de cada centavo. A cooperação internacional é cada vez mais rígida e tecnicamente organizada para garantir que o uso seja bem feito através de bons projetos, com bons quadros lógicos definindo indicadores de resultado de curto, médio e longo prazo e que seja articulado com os próprios beneficiários. O que se fala é falácia. Quem gasta muito são as ONGs ligadas a representantes governamentais e hoje eu lhe digo que, se tivesse uma visão um pouco mais aberta do governo federal, dos governos estaduais e municipais, para a importância do terceiro setor, esse Brasil seria diferente. Porque aí se teria parcerias efetivas, colaborações, juntando força, conhecimento e experiência.
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